Um indivíduo que sistematicamente discipline sua vida em torno do objetivo de aprimorar as vidas daqueles que o rodeiam irá deixar um legado. Este legado pode ser positivo ou negativo.

Existem aqueles que estão apenas em busca de poder e que, por isso, irão tentar influenciar a vida de outras pessoas por meio do engano e da adulação. Seu objetivo é mudar corações, mentes e o comportamento daqueles que o cercam. Seu legado tende a ser negativo.

Mas há também aqueles que se esforçam ao máximo para transformar as vidas de terceiros de uma forma positiva. Eles invariavelmente seguem um estilo de vida específico, o qual governa suas ideias e seu comportamento. Eles sistematicamente tentam estruturar suas próprias vidas de tal maneira que eles próprios se tornam demonstrações empíricas da própria visão de mundo que defendem. 

Qualquer pessoa que tenha como o objetivo de sua vida mudar as opiniões de outras pessoas tem de estar comprometida com dois princípios: fazer sempre aquilo que defende e apoiar (de qualquer maneira possível) causas que estejam de acordo com o que defendem. 

Em primeiro lugar, é preciso ter em mente que a maioria das pessoas não quer mudar sua opinião em relação a nada. Mudar uma única opinião significa que o indivíduo tem de mudar suas opiniões a respeito de vários tópicos. Aquela velha regra é válida: “Você não pode mudar apenas uma coisa”. Portanto, há um alto custo ao se repensar aquelas opiniões que você mais aprecia e valoriza. Pessoas tendem a evitar empreitadas que envolvam altos custos.

Quando alguém é confrontado com uma nova opinião, se esta opinião está relacionada a como as pessoas devem agir, uma das primeiras autodefesas que o ouvinte irá levantar é esta: “A pessoa que está recomendando esta nova ideia vive consistentemente em termos desta ideia?” 

Se é algo óbvio para o ouvinte que esta pessoa não faz o que diz defender, então fica claro que o próprio defensor da ideia não leva a sério a verdade e a efetividade daquilo que ele diz defender. Isto dá ao ouvinte uma maneira fácil de escapar da conversa. A ideia defendida não vingará.

Ludwig von Mises

Meu único encontro pessoal com Mises ocorreu no segundo semestre de 1971. Eu havia sido contratado pela Foundation for Economic Education. Naquela data, eu havia sido convidado para uma cerimônia especial. F.A. Harper havia editado uma segunda coleção de ensaios honrando Mises. O primeiro livro de ensaios havia sido editado pela esposa de Hans Sennholz, Mary Sennholz, e foi publicado em 1956. 

A cerimônia ocorreu em um hotel em Nova York. Após a cerimônia, tive a oportunidade de conversar com Mises sobre vários assuntos, inclusive sua ligação com o sociólogo alemão Max Weber. Weber havia se referido ao ensaio de Mises, O cálculo econômico sob o socialismo, em uma nota de rodapé em um livro que Weber não chegou a completar. Ele morreu em 1920. Mises me disse que ele havia enviado seu ensaio para Weber.

Mises deixou um legado que, desde sua morte em 1973, vem crescendo continuamente. Ele foi um daqueles raros homens que teve duas fases em sua carreira. A primeira fase, que começou em 1912 e terminou após a publicação da Teoria Geral (1936) de John Maynard Keynes, estabeleceu sua reputação de grande teórico econômico.  Seu livro de 1912 sobre moeda e sistema bancário, seu livro de 1922 sobre o socialismo, e seus vários artigos sobre tópicos específicos de teoria econômica o comprovaram um grande teórico. 

Mas sua inflexível oposição a todas as formas de moeda fiduciária estatal de curso forçado garantiu a ele a reputação de um Neandertal do século XIX em um mundo de moedas estatais de curso forçado, o qual começou com a abolição do padrão-ouro clássico no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Sua hostilidade ao socialismo também contribuiu para seu status de pária. Ele estava vigorosamente resistindo a tudo aquilo que os círculos acadêmicos consideravam ser a onda do futuro. Acadêmicos sempre querem seguir modismos. Mises não era assim.

O triunfo do keynesianismo após 1936, em conjunto com a erupção da Segunda Guerra Mundial em 1939, trouxe um eclipse à carreira de Mises. Na primeira metade da década de 1930, a influência do nazismo na Áustria crescia sombriamente. Sendo um liberal da velha guarda e um judeu, Mises sabia que seus dias estavam contados. Ele temia que os nazistas tomassem o controle da Áustria, e ele estava correto. Sendo um economista defensor do livre mercado — conhecido pela esquerda como o mais implacável oponente do intervencionismo econômico — e um judeu, ele não teria sobrevivido na Áustria.

Sentindo que tais eventos eram apenas uma questão de tempo, Mises aceitou um cargo em Genebra e para lá se mudou em 1934, aceitando um dramático corte salarial. Sua noiva o acompanhou e lá se casaram, não sem antes ele tê-la avisado que, embora escrevesse bastante sobre o assunto, ele nunca teria muito dinheiro.

Mises ficou em Genebra por seis anos, obrigado a deixar para trás sua adorada Viena e tendo de ver, impotente, a civilização sendo despedaçada. Quando os nazistas anexaram a Áustria em 1938, eles saquearam seu apartamento em Viena e roubaram todos os seus livros e monografias. Ele passou a viver uma existência nômade, sem ter a mínima ideia de qual seria seu próximo emprego. E foi assim que ele viveu o auge de sua vida: já estava com 57 anos e era praticamente um sem-teto.

Mas nada disso abalou Mises. Ele seguia concentrado em seu trabalho. Durante seus seis anos em Genebra, ele continuou se dedicando à pesquisa econômica e às escritas. O resultado foi sua até então obra magna, um enorme tratado de economia chamado Nationalökonomie (o precursor de Ação Humana). Em 1940, ele completou o livro, o qual foi publicado por uma pequena editora e com edição extremamente limitada. Mas quão intensa poderia ser, naquela época, a demanda por um livro sobre liberdade econômica escrito em alemão? Certamente não seria nenhum bestseller. E Mises certamente sabia disso enquanto o escrevia. Mas escreveu assim mesmo.

No entanto, em vez de celebrações e noite de autógrafos, Mises naquele ano se deparou com outro evento que mudaria (novamente) sua vida. Ele foi avisado por seus patrocinadores em Genebra que havia um problema. Vários judeus estavam se refugiando na Suíça. Ele foi alertado de que deveria procurar outro lar. Os Estados Unidos eram o novo porto seguro.

Mises então começou a escrever cartas pedindo por posições universitárias nos EUA, mas tente imaginar o que isso significava. Ele só falava alemão. Suas habilidades em inglês se resumiam à leitura. Ele teria de aprender o idioma ao ponto de se tornar exímio o bastante para poder dar aulas. Ele havia perdido todos os seus arquivos, monografias e livros. Ele não tinha nenhum dinheiro. E ele não conhecia ninguém influente nos EUA.

E havia um sério problema ideológico também nos EUA. O país estava completamente dominado e fascinado pela economia keynesiana. A profissão de economista havia sofrido um vendaval. Praticamente não mais existiam economistas pró-livre mercado nos EUA, e não havia nenhum acadêmico defendendo esta causa. No final, Mises se mudou para os EUA sem ter nenhuma garantia de nada. E já estava com quase 60 anos.

Quando ele chegou aos EUA em 1940 como um judeu refugiado, ele era praticamente um desconhecido no país. Ele não tinha nenhum cargo assalariado de professor. Ele já tinha 59 anos. Ele jamais havia estado nos EUA. Mas ele teve uma grande sorte: havia um jornalista nos EUA que não apenas conhecia sua obra, como também havia se tornado um defensor dela em suas colunas de jornal. Seu nome era Henry Hazlitt.  Foi Hazlitt quem estimulou alguns empreendedores, como Lawrence Fertig, a fazer doações recorrentes a Mises.

Mises então passou a depender exclusivamente das doações destes poucos amigos e de alguns artigos que eram ocasionalmente encomendados por algumas revistas especializadas, a pedido destes amigos.

Durante os 30 anos seguintes, Mises foi uma voz solitária e sem recursos em defesa do livre mercado, lutando contra a vastidão keynesiana que dominava a paisagem mundial. Ele criou um seminário na New York University (NYU) para estudantes universitários, o qual durou 25 anos. Murray Rothbard era um dos frequentadores assíduos, embora apenas como ouvinte. Mises nunca recebeu salário da universidade, a qual o relegou ao status de professor visitante. Ele recebia ajuda de doadores. No entanto, não há hoje nenhum professor do departamento de economia da NYU que seja lembrado. Todos foram pessoas sem importância e não deixaram nenhum legado.

A publicação de seu livro Ação Humana, pela Yale University Press em 1949, começou a estabelecer sua reputação nos EUA. O livro vendeu muito mais do que havia sido inicialmente previsto. Este livro foi o primeiro a conter uma teoria abrangente e integrada da economia de livre mercado. Até então, nada remotamente parecido havia sido publicado. Foram muito poucas as pessoas que se deram conta disso em 1949, mas qualquer um que já tenha estudado a história do pensamento econômico sabe que é neste livro que se encontra a primeira aplicação abrangente da teoria econômica para toda uma economia de mercado. A análise é integrada em termos da defesa econômica austríaca da teoria do valor subjetivo e do individualismo metodológico.

Ele continuou escrevendo após 1949. Seus livros foram vendidos pela Foundation for Economic Education (FEE), a qual fez com que ele ganhasse a atenção de leitores que defendiam o livre mercado. Seus artigos começaram a aparecer na revista publicada pela FEE, The Freeman. A revista não era de ampla circulação nos meios acadêmicos, mas era bastante lida pela direita.

Eu comprei uma cópia de Ação Humana em 1960. Naquela época, eu já estava a par da importância de Mises para a história do pensamento econômico, mas, em minha universidade, eu provavelmente era o único estudante que o conhecia. 

Mises sempre foi um obstinado em sua dedicação aos princípios do livre mercado. Provavelmente mais do que qualquer outro grande intelectual do século XX, ele era conhecido entre seus pares como alguém inflexível, que não fazia concessões àquilo em que acreditava. Pelos economistas da Escola de Chicago ele foi chamado de ideólogo. E eles estavam certos. Por causa de sua consistência na aplicação do princípio do não-intervencionismo em cada setor da economia e, acima de tudo, por causa de sua oposição a bancos centrais e à manipulação estatal da moeda, os economistas o consideravam excêntrico. “Excêntrico”, para eles, era sinônimo de “rigorosamente consistente”.

Assim como os nazistas, os soviéticos também sabiam quem era Mises. Após a queda do nazismo, os soviéticos confiscaram as obras de Mises então em posse dos nazistas e as enviaram a Moscou. Suas obras roubadas ficaram em Moscou e nunca foram descobertas por nenhum economista ocidental até a década de 1980. O que foi uma grande ironia: economistas ocidentais não sabiam quem era Mises, mas os economistas soviéticos sim. Isto se tornou ainda mais verdadeiro em meados da década de 1980, quando a economia soviética começou a se desintegrar, exatamente como Mises havia previsto que aconteceria.

A grande vantagem de Mises sobre praticamente todos os seus colegas era esta: ele escrevia claramente. Todos os outros economistas, além de escreverem da maneira convoluta e repleta de jargões, enchem seus escritos de equações. Mises não utilizava equações e nem recorria a jargões. Ele escrevia seus parágrafos utilizando sentenças que eram desenvolvidas de maneira sucessiva. Você pode começar pela primeira página de qualquer um de seus livros e, se prestar atenção, chegará ao fim sem se tornar confuso em momento algum.

Isto era uma grande vantagem, pois as pessoas comuns que se interessavam por economia conseguiam seguir sua lógica. Sua reputação se espalhou no final de década de 1950 e por toda a década de 1960 por causa de seus artigos na The Freeman. Esta revista chegou a ter uma circulação de 40 mil exemplares em alguns anos. Não eram muitos os economistas que conseguiam, naquela época, atingir um público tão amplo e tão variado.

Mises realmente se manteve firme aos seus princípios durante todo o seu tempo de vida. Ele se manteve firme de maneira tão tenaz e obstinada que, por décadas, ele não teve influência alguma sobre a comunidade acadêmica. Todos os economistas o desprezavam ou ignoravam. Porém, após sua morte em 1973, sua influência começou a crescer. Em 1974, seu discípulo F.A. Hayek ganhou o Prêmio Nobel de Economia. Pouco a pouco, a reputação de Mises foi se espraiando. 

Hoje, há vários Institutos Mises ao redor do mundo — todos surgidos voluntária e espontaneamente, sem nenhum financiamento centralizado —, e seu nome é atualmente mais conhecido do que o de quase todos os outros economistas de sua geração, tanto os de antes da Primeira Guerra Mundial quanto os de depois da Segunda Guerra Mundial. O cidadão comum certamente não está familiarizado com os nomes da maioria dos economistas da primeira metade do século XX, e certamente é incapaz de ler e compreender as obras de praticamente qualquer economista da segunda metade.

Portanto, exatamente porque Mises nunca se mostrou disposto a fazer concessões, especialmente na área de metodologia, seu legado tem sido muito maior do que o da maioria de seus finados colegas. O legado de Mises só cresce; o deles, praticamente não existe.

Conclusão

Mises deve ser julgado não somente como um pensador extraordinariamente brilhante, mas também como um ser humano extraordinariamente corajoso. Ele acima de tudo sempre se manteve inarredavelmente apegado à verdade de suas convicções, sem se importar com o resto, e sempre preparado e disposto a atuar sozinho, sem uma única ajuda, na defesa da verdade.  Ele jamais se importou um buscar fama pessoal, posições de prestígio ou ganhos financeiros, pois isso significaria ter de sacrificar seus princípios. 

Durante toda a sua vida, ele foi marginalizado e ignorado pelo establishment intelectual, pois a verdade de suas visões e a sinceridade e o poder com que as defendia e desenvolvia estraçalhava todo o emaranhado de mentiras e falácias sobre o qual a maioria dos intelectuais de sua época — bem como os de hoje — construiu suas carreiras profissionais.

Seus seminários, assim como seus escritos, eram caracterizados pelo mais alto nível de erudição e sabedoria, e sempre mantendo o mais profundo respeito pelas ideias. Mises jamais se interessou pela motivação pessoal ou pelo caráter de um autor, e sim por uma só questão: saber se as ideias daquela pessoa eram verdadeiras ou falsas.  

Da mesma forma, sua postura e comportamento pessoal sempre foram altamente respeitosos, reservados e fonte de amigável encorajamento.  Ele constantemente se esforçava para extrair de seus alunos o que neles havia de melhor, para ressaltar suas melhores qualidades.

O mundo vive hoje mais uma era de planejamento econômico, e estamos vendo os economistas se dividirem em dois lados. A esmagadora maioria se limita a dizer exatamente aquilo que os regimes querem ouvir. Afastar-se muito da ideologia dominante é um risco que poucos estão dispostos a correr. As recompensas materiais são quase nulas, e há muito a perder.

Ser um economista íntegro significa não se furtar a dizer coisas que as pessoas não querem ouvir; significa, principalmente, dizer coisas que o regime não quer ouvir. Para ser um bom economista, é necessário bem mais do que apenas conhecimento técnico. É necessário ter coragem moral. E, no mercado atual, tal atitude está ainda mais escassa do que a lógica econômica.

Assim como Mises necessitou da ajuda de Hazlitt e Fertig, economistas com coragem moral necessitam de apoiadores e de instituições que os suportem e deem voz a eles. Este é um fardo que tem de ser encarado. Como o próprio Mises dizia, a única maneira de se combater ideias ruins é com ideias boas. E, no final, ninguém estará a salvo se a civilização for destruída em consequência do predomínio das ideias ruins.

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