O Direito vem antes do Estado; e a propriedade privada originou o Direito

A propriedade privada e a ação humana são, necessariamente e por definição, anteriores ao Estado. Antes de surgir um estado os indivíduos já agiam; e a noção de propriedade privada já era intrínseca à ação do indivíduo.

Além de serem anteriores ao Estado, pode-se também dizer com plena certeza que a propriedade privada e a ação humana são a base de todo o ordenamento jurídico.

O estado de direito — isto é, o primado da lei — não necessitada de um Estado (governo). Não é necessário haver um governo para haver um estado (uma situação) de direito. Mais ainda: somente sem um Estado seria possível descobrir competitivamente qual é o melhor Direito — ou seja, qual seria o melhor ordenamento jurídico.

Contradição

Os defensores da necessidade de existir um governo para criar e impingir leis caem em uma inevitável contradição.

Quando o Direito é determinado e impingido pelo estado, tem-se apenas um conjunto de legislações criadas pelos próprios legisladores. Consequentemente, tem-se inevitavelmente um conjunto de normas que o mais forte impõe sobre o mais fraco.

Para os defensores deste arranjo, o conteúdo das normas é menos importante que o ato de força por meio do qual essas normas são impostas; seu traço distintivo é a coerção, e não a utilidade das normas. Nada se discute sobre a moralidade e a ética deste arranjo; enfatiza-se apenas a necessidade de cumpri-lo, não importam os meios utilizados.

Para os defensores do estado, o conteúdo e a utilidade da norma é menos importante que a coerção utilizada para impingir esta norma. Exemplo clássico: uma pessoa quer trabalhar e está voluntariamente disposta a aceitar um valor salarial abaixo do mínimo estipulado pelo governo. Ela será proibida. E os defensores desta legislação aceitarão todos os tipos de sanção e punição contra esta pessoa (que ficará sem emprego e renda) e seu empregador (que poderá ir para a cadeia). A coerção é mais importante que a utilidade da norma.

Qual a incoerência desta postura? Simples: ao mesmo tempo em que tais pessoas dão menos importância ao conteúdo e mais à necessidade de impô-lo à força, elas asseguram que o direito impingido pelo estado é a pré-condição para uma sociedade livre: “sem normas não há mercado”, dizem eles.

Em outras palavras, estes teóricos socialistas do Direito consideram que a sociedade nasce e evolui não das interações voluntárias e espontâneas dos indivíduos, mas sim das relações coercitivas implantadas por um hierarca supremo. Sem uma mente consciente, respaldada pela força de um aparato policial, não haveria normas. E, sem normas, não haveria relações.

A realidade

A realidade, porém, é bem distinta. A ação humana livre e sua propriedade honestamente adquirida devem marcar o começo de toda a análise teórica e histórica. As relações humanas necessariamente antecedem as normas. Com efeito, as normas são fruto das relações humanas.

Uma norma nada mais é que uma expectativa de que outro indivíduo irá agir de uma determinada maneira, expectativa essa que pode surgir das promessas (ius — direito em latim — vem etimologicamente de iurare, jurar) ou dos costumes (isto é, de comportamentos idênticos do passado).

Se a tese socialista estiver correta, ou seja, se a propriedade privada realmente só surgiu após a criação de um ordenamento estatal, então surge um inevitável problema lógico e cronológico: como esse Estado nasceu? Como ele obteve suas receitas tributárias para pagar seu aparato policial, seus funcionários e seus juízes se não havia propriedades a serem tributadas?

Com efeito, os socialistas recorrem a essa teoria sem sentido unicamente com o intuito de querer argumentar que a propriedade privada é um privilégio concedido pelo Estado aos indivíduos, graças à sua legislação e à sua proteção policial. Consequentemente, a propriedade seria um privilégio que está subordinado a todas as eventualidades e alterações que seu mantenedor — o estado — queira lhe infligir.

Porém, como dito, a propriedade privada e a ação humana são necessariamente anteriores ao Estado (por uma questão de lógica). Por isso, pode-se dizer com plena certeza que ambas são a base de todo o ordenamento jurídico. As normas não criam a sociedade; é a sociedade quem cria normas, e faz isso de maneira contínua e evolutiva. Como disse Paolo Grossi: “A práxis — atividade humana na sociedade — constrói dia a dia seu Direito, moldando e modificando segundo as exigências do local e do tempo”.

Aqueles que querem estabelecer uma profunda distinção entre sociedade e Direito, criando uma frente autônoma de sabedoria normativa, se esquecem de que impedir os indivíduos de criar o Direito a partir de seus feitos e interações é o equivalente a lhe impedir de agir. Por isso, um Direito de origem socialista irá inevitavelmente se degenerar em uma sociedade completamente policialesca, autoritária, regulada e escravizada.

O Direito não é um conjunto de mandamentos revelados, mas sim de práticas previsíveis e úteis para se alcançar os objetivos individuais por meio da cooperação humana. O Estado, por meio de suas legislações coercitivas, pode apenas arrebentar esses laços voluntários e cooperativos, destruindo na prática a própria instituição jurídica. Da mesma maneira que o planejamento econômico estatal erradica o mercado, o planejamento jurídico estatal extermina o Direito.

Conclusão

Vale repetir: o estado de direito — isto é, o primado da lei — não requer um Estado (governo) para garantir um estado (uma situação) de direito. Somente sem um Estado será possível descobrir competitivamente qual é o melhor Direito.

E a conclusão final é que se a propriedade privada e a liberdade são a origem do direito, então, por definição, um organismo que se baseia na coerção e na permanente violação da propriedade privada e da liberdade não pode criar outra coisa senão um Direito violentado e corrompido.

VENEZUELA FAZ PRIVATIZAÇÕES PARA EVITAR COLAPSO ECONÔMICO

No início de 2007, após ganhar um segundo mandato de seis anos como presidente, Hugo Chávez anunciou seu plano de nacionalizar a maior empresa de telecomunicações da Venezuela, a CANTV. À época, ele também sugeriu que outros planos de nacionalização estavam por vir.

“Tudo isso foi privatizado, que seja nacionalizado”, anunciou Chávez, que havia concorrido sob a bandeira do socialismo-democrático.

Quase uma década e meia depois, à beira de uma fome em massa e de uma crise energética crescente, a Venezuela está agora se movendo na direção oposta.

De acordo com a Bloomberg News, o presidente Nicolás Maduro começou discretamente a transferir ativos do estado de volta para as mãos de proprietários privados em um esforço para reverter o colapso econômico da Venezuela.

Sobrecarregado com centenas de empresas estatais falidas em uma economia que despenca de um penhasco, o governo venezuelano está abandonando a doutrina socialista ao transferir empresas-chave para investidores privados, oferecendo lucro em troca de uma parcela da receita ou produtos.

Fabiola Zerpa e Nicolle Yapur, jornalistas de Caracas.

Embora não tenha sido anunciada publicamente, a transferência foi confirmada por “nove pessoas com conhecimento do assunto”. Esse grupo supostamente inclui dezenas de processadores de café, silos de grãos e hotéis que foram confiscados como parte da ampla nacionalização da Venezuela que começou sob Chávez.

COLAPSO DA VENEZUELA

De certa forma, a situação da Venezuela é a mais improvável das histórias.

Em 1950, a Venezuela era uma das nações mais prósperas do mundo. Estava classificada entre os 10 primeiros países em PIB per capita e tinha uma força de trabalho com produtividade maior do que a dos Estados Unidos.

Porém, o crescimento econômico da Venezuela começou a estagnar em meados da década de 1970. Isso após a nacionalização do setor de petróleo, que resultou em um aumento da receita do governo e dos gastos públicos.

Estima-se que a Venezuela arrecadou US$7,6 bilhões somente em 1975 com a nacionalização (US$ 37 bilhões em 2021 dólares). John Polga-Hecimovich, professor de ciência política da Academia Naval dos Estados Unidos, disse que o governo venezuelano gastou mais entre 1974 e 1979 do que em toda a sua história anterior.

Apesar do crescimento dos gastos do governo, a situação política manteve-se relativamente estável. No final dos anos 1970, o professor de ciências políticas da Universidade de Michigan, Daniel H. Levine, afirmou que “os venezuelanos alcançaram uma das poucas ordens políticas competitivas estáveis ​​na América Latina”.

No entanto, o flerte da Venezuela com o socialismo acabaria se transformando em um caso de amor.

Em 1998, os venezuelanos votaram em Chávez, um populista que se autodenominava marxista. Ele foi reeleito em 2000 com 59,8% dos votos e em 2006 com 62,8%. A partir de seu segundo mandato, Chávez começou a nacionalizar vários setores da economia — incluindo agricultura, siderurgia, transporte e mineração — e confiscando mais de mil empresas, fazendas e propriedades.

Na época da morte do presidente, suas políticas socialistas foram anunciadas por alguns como um “milagre econômico”. Mas, na realidade, a economia venezuelana já estava em queda livre.

Em 2014, com o colapso do preço do petróleo, o governo de Maduro admitiu que estava em recessão severa e que a Venezuela estava sofrendo com a inflação mais alta das Américas. Em janeiro de 2016, o país estava à beira de um “colapso econômico completo“. Não muito depois, o governo venezuelano abandonou qualquer pretensão de ser um regime “democrático”.

CONSEQUÊNCIAS DA NACIONALIZAÇÃO

Um relatório das Nações Unidas de 2019 concluiu que havia “motivos razoáveis ​​para acreditar que o governo de Maduro havia usado forças especiais para matar milhares de oponentes políticos em execuções extrajudiciais”.

Até o momento, acredita-se que mais de 5 milhões de venezuelanos fugiram do país para escapar da ruína econômica e da opressão política.

PRIVATIZAÇÃO AO RESGATE

O colapso da Venezuela, que já foi o país mais próspero da América Latina, não é segredo. Mas o pivô de Maduro em direção à iniciativa privada em uma tentativa de estabilizar o país em colapso é uma nova revelação.

Não sem precedentes, contudo.

“Este processo é semelhante ao processo de privatização na Rússia, em que os ativos são transferidos para empresas privadas locais e para investidores de países aliados do governo”, disse Asdrubal Oliveros, chefe da consultoria econômica Ecoanalitica, à Bloomberg.

Rodrigo Agudo, chefe da Venezuela Food Network, disse à agência de notícias que o regime instituiu “um capitalismo selvagem” ao cessar a cobrança de impostos sobre certas empresas; liberalizar o licenciamento de importações; e convencer militares e outras autoridades a investir em certos negócios.

Ramon Lobo, um legislador do partido socialista no poder e ex-ministro das finanças, disse que os acordos tendem a ter limites de tempo (geralmente menos de 10 anos) e funcionam como uma concessão. As empresas podem investir e administrar o ativo, com o governo ficando com uma porcentagem.

“Acreditamos que isso seja positivo porque é a sincronização do setor público com o setor privado”, disse Lobo. “O estado atua como um supervisor e recebe uma compensação.”

UM PEQUENO PASSO PARA EVITAR O COLAPSO DA VENEZUELA

Em certo sentido, a revelação do impulso de privatização da Venezuela é um claro desenvolvimento positivo.

O esforço de Maduro para formar discretamente parcerias público-privadas, uma estratégia que começou em 2017, revela o fracasso total da economia de comando da Venezuela. Bloomberg também aponta, por exemplo, que fábricas de processamento de alimentos antes bem-sucedidas estão “quase ociosas” desde que foram apreendidas pelo governo.

Esta revelação é trágica, mas não é surpreendente. Por sua própria natureza, as economias de comando estão condenadas ao fracasso porque carecem dos incentivos básicos e das estruturas de preços que estão presentes em uma economia de mercado.

É mais do que uma metáfora descrever o sistema de preços como uma espécie de maquinário para registrar mudanças, ou um sistema de telecomunicações que permite aos produtores individuais observar apenas os movimentos de alguns ponteiros, como um engenheiro observaria as mãos de alguns. dials, a fim de ajustar suas atividades a mudanças das quais talvez nunca saibam mais do que o que está refletido no movimento dos preços.

F. A. Hayek

Muitos podem ficar tentados a pensar que Maduro era apenas uma pessoa má ou estúpida. Mas Ludwig von Mises nos lembra que a busca pela pessoa certa para administrar uma economia de comando é fútil por esse motivo.

Não se percebeu que mesmo homens excepcionalmente talentosos de alto caráter não podem resolver os problemas criados pelo controle socialista da indústria

Ludwig von Mises

Parece que depois de muita dor e sofrimento, mesmo os líderes socialistas na Venezuela admitiram que não podem administrar uma economia com eficiência suficiente para evitar a ruína econômica. Mas, embora devolver as empresas aos proprietários privados seja um passo na direção certa, é dificilmente correto chamar a estratégia de Maduro de “capitalismo”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O governo de Maduro ainda está usando de tudo, desde controles de preços de alimentos a aumentos do salário mínimo e manipulação da moeda para administrar sua economia. Isso sem mencionar a seleção de quais empresas participarão de seus esforços de privatização (e quem poderá investir).

Em termos de liberdade econômica geral, a Venezuela ficou em 179º lugar entre 180 países em 2020 – um lugar à frente da Coreia do Norte e um atrás de Cuba.

Portanto, enquanto aplaudimos o pequeno, embora importante, passo da Venezuela, não devemos perder de vista uma observação do economista Prêmio Nobel Vernon Smith. Ainda em 2018, Smith observou que a prosperidade voltaria quase imediatamente para a Venezuela se os políticos revogassem suas políticas prejudiciais e liberassem o poder dos mercados.

OS DIREITOS DE PROPRIEDADE JÁ SÃO VIRTUAIS

Este texto é a primeira parte de dois artigos sobre propriedade virtual. Encontre o segundo texto aqui.

“Direitos” é um termo altamente disputado. Os direitos são as liberdades “concedidas pelo Criador [de alguém]” antes e independentes do governo? Ou são obrigações e permissões definidas pela sociedade? De acordo com o uso comum do termo a resposta seria: ambos.

A genialidade do Ocidente foi ter criado um sistema que permitisse às pessoas compreender com a mente valores que os olhos humanos nunca poderiam ver e manipular coisas que as mãos nunca poderiam tocar.

Hernando de Soto, O Mistério da Capital

PRÉ-REQUISITOS PARA O CONSENTIMENTO VERDADEIRO

Este é o primeiro tipo de direitos. Os direitos inalienáveis ​​da Declaração de Independência dos Estados Unidos — vida, liberdade e busca da felicidade — se encaixam nessa categoria. Eles são os pontos de partida necessários para uma sociedade moral na qual as trocas e associações voluntárias podem ocorrer.

Pegando emprestado do direito contratual, podemos ver que, sem esses direitos básicos, não se pode dizer que uma pessoa consente livremente com outras obrigações. Por exemplo, a vida e a liberdade são essenciais, porque os contratos firmados sob coação, como na ponta de uma arma, são moralmente inaceitáveis.

Da mesma forma, uma oferta de contrato em que todas as outras alternativas tenham sido coercitivamente eliminadas não seria justa para o destinatário. E, uma oferta em que o destinatário seja impedido de acessar informações externas não seria totalmente consensual, pois o destinatário provavelmente não teria informações importantes sobre o negócio.

Não é por acaso que os governos autoritários frequentemente violam esses direitos básicos — quando os cidadãos são capazes de tomar uma decisão livre e informada, eles podem escolher sair. Visto que, esses direitos básicos são descobertas da filosofia moral e não ditames de autoridades, eles podem ser usados para avaliar (e possivelmente rejeitar) governos.

ACORDOS CONSENSUAIS

Infelizmente, o segundo tipo de direito é muitas vezes confundido com o primeiro, embora sejam bastante diferentes. Sem a sociedade, “no mundo de Robinson Crusoe”, esses direitos não teriam finalidade. Enquanto o primeiro tipo de direitos são as condições necessárias para o consentimento verdadeiro, esses outros tipos de direitos são idealmente o produto dos próprios acordos consensuais.

Seu poder de vincular é exclusivamente baseado no poder originalmente concedido a eles pelo indivíduo. Esses direitos são o produto das “regras do clube” que devem ser acordadas a fim de ingressar em uma comunidade. Logo, podemos imaginar muitos tipos diferentes de regras e estruturas organizacionais que seriam moralmente inquestionáveis, mesmo que fossem funcionalmente diferentes.

Os direitos de propriedade são um exemplo básico desses direitos definidos pela sociedade. De acordo com o artigo clássico de Demsetz:

Os direitos de propriedade são um instrumento da sociedade e derivam seu significado do fato de que ajudam um homem a formar aquelas expectativas que ele pode razoavelmente manter em suas relações com os outros.

Essas expectativas encontram expressão nas leis, costumes e costumes de uma sociedade. Um proprietário de direitos de propriedade possui o consentimento de seus semelhantes para permitir que ele aja de determinadas maneiras.

O proprietário espera que a comunidade impeça que outras pessoas interfiram em suas ações, desde que essas ações não sejam proibidas nas especificações de seus direitos.

Em outras palavras, um direito de propriedade obriga os outros membros de uma sociedade a respeitar certas regras.

QUEM PODE CONCEDER DIREITOS

A atribuição de direitos de propriedade no início é em grande parte moralmente arbitrária. Considere, por exemplo, a alocação de direitos de propriedade entre pecuaristas e fazendeiros. O criador de gado deve ser capaz de deixar seus animais vagarem livremente e os fazendeiros devem cercar suas terras, ou os criadores de gado devem prender seus animais?

Qualquer uma das regras funcionaria, mas é importante que as regras sejam claras o suficiente para permitir que os indivíduos formem expectativas sobre como seus vizinhos agirão e o que a comunidade aplicará.

Além disso, uma vez que os indivíduos confiaram nas regras, como comprar terras para um propósito específico, mudanças repentinas nas regras são semelhantes a uma quebra de contrato. Portanto, os indivíduos devem ser indenizados.

A ORIGEM VIRTUAL DOS DIREITOS

Direitos socialmente definidos, como os direitos de propriedade, são virtuais por natureza. Como Jeremy Bentham afirmou:

Não há imagem, nenhuma imagem, nenhum traço visível, que pode retratar a relação que constitui ‘propriedade’. Não pertence à física, mas à metafísica; é totalmente uma concepção da mente.

1914

Nesse sentido, o economista peruano Hernando de Soto também ecoa esse sentimento em seu livro O Mistério do Capital, dizendo que “propriedade é puro conceito”.

A prova de que propriedade é puro conceito”, diz de Soto, “surge quando uma casa muda de mãos; nada muda fisicamente. Olhar para uma casa não dirá quem a possui. Uma casa que é sua hoje parece exatamente como era ontem quando era minha. É idêntica quer eu o possua, alugue ou venda para você. Propriedade não é a casa em si, mas um conceito econômico sobre a casa, consubstanciado em uma representação legal. Isso significa que uma representação formal de propriedade é algo separado do bem que representa.

Hernando de Soto

Se a propriedade só existe “no universo conceitual onde vive o capital” como ele afirma, então como sabemos quem realmente possui o quê?

Posse, uso e acesso

Temos vários mecanismos diferentes: para muitos itens do dia a dia, como livros, possuir um objeto é a única indicação de propriedade — não há registro nacional de livros que rastreie a propriedade e a transferência do livro.

Para outros itens, podemos usar escrituras — documentos formais que podem ser usados ​​como prova de propriedade. Ou a propriedade pode ser registrada por uma autoridade em um banco de dados centralizado, como em um registro de imóveis.

Os direitos de propriedade são muito mais do que a propriedade de um objeto; são regras sobre uso e acesso. Por exemplo, o proprietário de uma parcela pode vender os direitos minerais (o direito de acessar e remover certos recursos, como o petróleo) enquanto mantém a propriedade da terra.

O proprietário de um apartamento pode alugar seu apartamento e desistir do direito de entrar e usar o apartamento por um período de tempo. Portanto, os direitos de propriedade não se referem apenas ao registro de títulos; eles exigem que registremos quem recebeu acesso ou uso e de que maneiras. Assim, novos direitos socialmente definidos podem ser separados de outros direitos à medida que novos usos e demandas são descobertos.

Sistematização dos direitos de propriedade

Além disso, os direitos podem ser recombinados em novos pacotes, como quando um incorporador monta vários terrenos para construir um shopping center. “Quando uma transação é concluída no mercado”, diz Demetz, “dois pacotes de direitos de propriedade são trocados. Um pacote de direitos geralmente está associado a uma mercadoria ou serviço físico, mas é o valor dos direitos que determina o valor do que é trocado”.

Pelo menos três coisas são necessárias para criar um sistema utilizável de direitos de propriedade:

  1. Alguma forma de criar regras socialmente definidas que sejam claras o suficiente para que todos entendam e consistentes o suficiente para que todos possam depender;
  2. Alguma forma de registrar regras e quem possui quais direitos, para que possamos verificar se eles estão sendo usados ​​conforme prometido;
  3. Alguma forma de fazer cumprir as regras.

As regras que compõem os direitos de propriedade devem corresponder às ações realizadas na vida real. Não faz sentido ter um conjunto formal de regras se elas forem ignoradas pelas pessoas da comunidade.

Como disse de Soto, “a lei deve ser compatível com a forma como as pessoas realmente organizam suas vidas. A forma como a lei se mantém viva é mantendo o contato com os contratos sociais feitos entre pessoas reais no terreno”.

No entanto, há uma tensão natural entre os costumes locais e os padrões formais: um ambiente com bolsões de conjuntos de regras totalmente diferentes será difícil de entender e navegar, enquanto os padrões formais que podem ser facilmente compreendidos podem não capturar as nuances das regras da comunidade.

A EXCLUSÃO DE COSTUMES LOCAIS

Na prática, o sistema legal frequentemente falha em capturar os costumes locais e, portanto, bilhões de pessoas vivem fora da lei. De Soto estima que existam “cinco bilhões ou mais de cidadãos globais que não estão vinculados a [um] sistema tradicional de relatórios de propriedade”.

Em O Mistério do Capital, ele argumenta que a falta de representação formal da propriedade é responsável por limitar o crescimento do mundo em desenvolvimento. Afinal, os cidadãos dos países em desenvolvimento têm acesso a recursos significativos (estimados em US$ 9,3 trilhões, de acordo com de Soto). Porém, como não têm o título de propriedade de seus ativos, eles não podem ser usados ​​como capital.

Por exemplo, uma família pode ser proprietária de uma casa de acordo com sua comunidade local, mas como a família não possui o título legal de suas terras, eles não podem usar sua casa como garantia para obter um empréstimo. Isso torna difícil realizar muitas das ações que consideramos certas, como fazer “contratos lucrativos com estranhos” e obter “crédito, seguro ou serviços públicos”

Como podemos estender os direitos de propriedade para o resto do mundo? A tecnologia pode ajudar? De Soto deixa claro que os sistemas de mapeamento computadorizados, embora úteis, não são o requisito principal.

Os programas de criação de propriedades continuarão a falhar, enquanto os governos pensarem que a criação de propriedades requer apenas familiarizar-se com as coisas físicas. Isto é, que depois de fotografar, pesquisar, medir e computadorizar os inventários de seus ativos físicos, eles ter todas as informações necessárias para emitir títulos de propriedade. Eles não.

Fotografias e inventários informam apenas as autoridades sobre o estado físico dos ativos; eles nada dizem sobre quem realmente possui esses ativos ou como as pessoas organizaram os direitos que os governam.

Todas as fotografias e inventários de computador no mundo não podem dizer a ninguém quais regras locais garantem esses direitos ou qual rede de relacionamentos os mantém.

Por mais importantes que sejam os mapas e inventários para medir e localizar os ativos físicos aos quais a propriedade está ancorada, eles não dizem aos governos como construir o contrato social nacional que lhes permitirá criar uma propriedade legal generalizada.

TECNOLOGIA BLOCKCHAIN

É interessante, então, que o projeto atual de Soto é registrar o título de propriedade usando a tecnologia blockchain. Ele recentemente juntou forças com o fundador da Overstock, Patrick Byrne, em um esforço para “permitir que os pobres desbloqueiem com segurança o valor de suas terras; ajudar a apaziguar disputas, declarando claramente quem reivindica qual propriedade; e capacitar a propriedade da terra local. ”

Os detalhes não estão disponíveis no momento, mas isso levanta uma questão importante — o que torna o uso de um blockchain diferente do que apenas usar um banco de dados governamental? Afinal, de Soto havia afirmado claramente que a informatização por si só não resolveria o problema. Existe algo mais na tecnologia blockchain do que simplesmente digitalizar registros?

Há sim. Os blockchains podem permitir a transferência segura de títulos sem o uso de uma autoridade central. Imagine o processo de venda de uma propriedade normalmente — vários intermediários podem ser usados, como empresas de títulos, para assumir o projeto de garantir que a propriedade é legítima e o proprietário declarado é o proprietário real.

Em uma blockchain, entretanto, a transferência do título de propriedade pode ocorrer sem um intermediário, de forma totalmente descentralizada, com o simples uso de contratos inteligentes. Nenhum funcionário do governo precisa armazenar e atualizar os dados, e a propriedade do título representado digitalmente pode ser facilmente verificada com assinaturas digitais.

Além disso, o emissor da representação digital ainda precisaria garantir que é uma representação correta dos contratos sociais locais no momento de sua emissão.

TÍTULOS DE PROPRIEDADE: A TECNOLOGIA COMO SOLUÇÃO

No segundo artigo, explorarei a ideia de usar contratos inteligentes para a transferência de títulos de propriedade, bem como se podemos usar código para fazer cumprir os próprios direitos de propriedade. Vou confiar muito em um artigo de Mark S. Miller e Marc Stiegler: “Digital Path: Smart Contracts and the Third World.

Escrevendo em 2004, bem antes do Bitcoin, Miller e Stiegler explicam que o código executado em uma máquina confiável pode fornecer transferências seguras de dinheiro emitido digitalmente e ativos emitidos digitalmente. Para ter certeza, esse caminho não será fácil ou óbvio — como Miller e Stiegler colocaram, “o caminho digital é inexplorado e quase totalmente desconhecido, e sujeito aos pontos cegos do pensamento positivo.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto à inclinação do positivismo jurídico para argumentar que a lei é simplesmente o que o estado diz; e, argumentando que, portanto, não tem a capacidade de fornecer uma crítica moral das leis injustas, Gordon Tullock brincou: “o que quer que mais possa ser dito sobre os julgamentos de Nuremberg , eles marcaram o enterro do positivismo jurídico”.

Em suma, é improvável que jamais tenhamos consentido verdadeiramente com nossas regras atuais de direitos de propriedade ou nosso regime jurídico atual de forma mais ampla. Este fato é apresentado por Michael Huemer, em seu livro: The Problem of Political Authority.

ELON MUSK INVESTIU NO FUTURO SUSTENTÁVEL E ESTÁ RECEBENDO OS DIVIDENDOS

Não é segredo nenhum que o empresário e engenheiro Elon Musk é uma espécie de ícone cultural. Como CEO da SpaceX e da Tesla; fundador da The Boring Company e co-fundador de outro punhado de empresas; Musk agora tem mais uma pena proverbial para enfiar na cabeça: o homem mais rico do mundo (brevemente). Superando o gigante da Amazon Jeff Bezos, ele alcançou esse status no início de 2021, atingindo um patrimônio líquido estimado em mais de US$185 bilhões.

Essa conquista em si é um feito enorme, mas o que é mais impressionante é a maneira como Musk construiu essa fortuna. Muitos da esquerda são rápidos em criticar as pessoas que atingiram o status de bilionários, sugerindo que ninguém deveria ter a oportunidade de acumular tal capital enquanto outras vivessem abaixo da linha da pobreza.

O que costuma ser esquecido nessas discussões, entretanto, é o bem que esses empreendedores criaram para os outros e para a sociedade em geral.

A ORIGEM DA FORTUNA DE ELON MUSK

Embora uma narrativa popular possa ser a de que Musk obteve sucesso explorando outros, parece haver uma profunda desconexão entre essa teoria e a realidade.

Ao lado de sua riqueza pessoal, Musk criou inúmeros empregos, contribuiu com milhões de dólares para instituições de caridade merecidas e liderou proezas tecnológicas e de engenharia que antes pareciam impossíveis. Assim, ele promoveu avanços importantes, abrindo caminho para o progresso, tanto dentro quanto fora de suas próprias empresas.

Portanto, em vez de condenar Musk, devemos examinar seu caminho para a prosperidade. É verdade que a Tesla recebeu subsídios governamentais. Porém, há lições a serem aprendidas aqui, e a principal entre essas lições é a do poder de correr riscos.

Afinal, se o governo pretende se envolver com a indústria privada de alguma forma, deve ser oferecendo incentivos à inovação, em vez de punir ou regulamentar excessivamente empreendedores promissores.

Energia limpa

Em 2004, quando os veículos elétricos eram amplamente considerados um nicho de mercado, Elon Musk entrou para o Conselho Administrativo da Tesla, a famosa empresa de carros elétricos. A partir dai, com sua estratégia de marketing não convencional e apelo ao luxo, a Tesla contribuiu significativamente para a popularização dos veículos elétricos no século XXI.

A partir da fundação da Tesla, a produção dos próprios veículos elétricos (VE’s), bem como da infraestrutura para esses veículos, cresceu astronomicamente. Desde 2003, os EUA ultrapassaram um milhão de vendas de VEs e a infraestrutura só continuou a se expandir.

Dessa forma, a Tesla abriu o caminho para que outros fabricantes de VE’s fizessem sua estreia no mercado moderno. Logo, o crescimento da indústria superou as expectativas iniciais e, com isso, acelerou nosso caminho para um futuro mais limpo.

LIVRE MERCADO E INOVAÇÃO

Musk, é claro, não tinha como saber disso 17 anos atrás, quando se arriscou e fundou a Tesla. Os empreendedores geralmente precedem as tendências do mercado com seus produtos, o que é a beleza de um mercado livre. Por causa da Tesla e de empresas de VE’s semelhantes, os consumidores receberam uma escolha nova e mais sustentável.

Historicamente, a inovação foi impulsionada por pessoas como Musk, não por atores do governo. Os inovadores costumam ser criticados por seu sucesso, apesar de liderarem as próprias iniciativas que os de esquerda costumam exortar os governos a assumir.

A principal diferença é que os empreendedores correm riscos com seus próprios recursos e por suas próprias consequências. Em contrapartida, os governos agem às custas dos contribuintes e, frequentemente, às custas das liberdades pessoais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que mais é crítico na trajetória de Musk é que ele não estava reagindo ao governo exigindo um certo número de veículos elétricos até um determinado ano ou, como a Califórnia promulgou no final do ano passado, uma eliminação completa dos veículos tradicionais movidos a gasolina até 2035.

Na verdade, Musk criou a Tesla porque teve uma ideia que ele acreditava ser benéfica e atraente para os consumidores. Nos primeiros anos, os atrasos e as dificuldades da inovação quase o levaram à falência. Porém, ele obteve sucesso na construção e, para sua felicidade, o mercado respondeu com entusiasmo, e a Tesla se tornou famosa em menos de duas décadas.

Em suma, Elon Musk é um pioneiro que assumiu riscos que outros não estavam dispostos a assumir, criando empregos; melhorando a sociedade; e liderando desenvolvimentos tecnológicos vitais e pesquisas nesse processo.

Na prática, seu sucesso deve-se a uma abordagem que nunca poderá ser replicada em série. Uma abordagem de criação baseada em ambição, curiosidade e respostas às demandas do mercado, ao invés de um mandato ou política.

FUNÇÃO SOCIAL: UM ATAQUE À PROPRIEDADE PRIVADA

Esse título parece ser bem emblemático no meio liberal, especialmente, pela rejeição de que há uma função social inerente à propriedade privada, que não corresponde ao desejo de não ao seu proprietário. E se eu te dissesse que, sim, a propriedade privada serve a um fim social, mas não da maneira que convencionam nos inúmeros manuais de Direito? Isto é, que não serve ao social de maneira exógena, mas, sim, endógena?

Em primeiro lugar, endógena neste contexto significa dentro do direito de propriedade, enquanto exógena é o seu oposto. E, isso, por sua vez, significa que a função social da propriedade é ser ela mesma — e não outra coisa.

A propriedade privada é fundadora da sociedade e age como um instituto, derivado de uma lei natural, no qual o homem consegue coordenar a sua vida econômica, cultural e política. Ou seja, possui uma definição objetiva. Por outro lado, a qualidade do fim social — qual seria este — é subjetiva.

Assim, este artigo explica para o que serve a propriedade privada e qual tratamento este direito já recebeu por diferentes sociedades ao longo da história. 

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL

A Constituição Federal de 1988 determina que toda propriedade rural deve cumprir a função social de produzir e que a propriedade urbana deve exercer a função social de moradia. Porém, em suma, estas delimitações não passam de imposições administrativas.

Dessa forma, o direito pátrio, ao estipular que a propriedade, mesmo privada, deva estar vinculada a critérios de sociabilidade, relaciona essa condição à própria limitação existente no nosso direito. Ou seja, o fato de não existir direito absoluto, como vemos na questão da expropriação do patrimônio utilizado em algum crime.

Por exemplo, a apropriação da arma utilizada na hora do crime. No entanto, a limitação inserida pela função social, ao desvirtuar o caráter de inação estatal, produz o efeito de turbação propriamente dita.

Logo, ao estipular parâmetros de produção e de controle sobre a questão econômica, o estado reduz de maneira incongruente a liberdade à estrutura social a ponto de tornar-se o agente turbador: responsável pela violação da qual, em tese (dentro da noção de estado democrático de direito), ele deveria proteger os indivíduos.

Na prática, a função social da propriedade é empregada de maneira banal e por interesses e conveniências políticas, muito antes de atender à sociedade em si. Afinal, o estado utiliza de manobras hermenêuticas para descumprir o que deveria, de fato, cumprir: proteger o direito à propriedade privada.

A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE NA ALEMANHA NAZISTA E NA UNIÃO SOVIÉTICA

Quando o Terceiro Reich tomou o poder, sob a liderança de Hitler, uma das primeiras mudanças legislativas foi, exatamente, a retirada de toda e qualquer garantia constitucional em relação à propriedade privada do povo alemão. Em geral, ficou estabelecido que a propriedade privada era uma concessão e não um direito.

Inclusive, em entrevista, Hitler afirmou que:

Quero que todos mantenham a propriedade que adquiriram para si conforme o seguinte princípio: o bem comum vem antes do interesse próprio. Mas o Estado deve manter o controle e cada proprietário deve se considerar um agente do Estado… O terceiro Reich sempre terá o direito de controlar os donos de propriedades.

Mais ao Oriente, na mesma época, a União Soviética (URSS) coletivizou todos os meios de produção, tornando-se dona de exatos 99,3% de todos os rendimentos nacionais do país. Além disso, a propriedade do estado era considerada sagrada. Assim, quem viesse a roubar, furtar ou esconder, seria considerado traidor da pátria, e, por isso, era condenado à morte por fuzilamento.

Dentre as consequências está Holomodor – a Grande Fome capitaneada por Josef Stálin –, que levou, pelo menos, 14,5 milhões de vidas na Ucrânia, de 1919 a 1933, segundo Robert Conquest, autor de The Harvest of Sorrow. A produção agrícola não cobria nem mesmo o sustento dos camponeses. 

Por fim, também, podemos ressaltar outras peculiaridades soviéticas, como os comitês gerais, que determinavam até quais seriam as descobertas científicas “favoráveis ao amanhecer dourado”. Ou seja, não havia espaço para pesquisa de fato, apenas ao direcionamento ideológico.

MISES E HAYEK EM DEFESA DA PROPRIEDADE PRIVADA

Ao citar apenas alguns pensadores, que fugiram de um destes dois regimes: Ludwig Von MisesF.A Hayek, Eric Voegelin – é possível afirmar que o desenvolvimento das ideias depende de um sistema forte e inerente voltado ao direito da propriedade privada. Infelizmente, alguns não tiveram o mesmo destino, como o historiador Marc Bloch.

Bloch, ciente de que estava na mira do regime totalitário nazista, escreveu o livro A Apologia da História, no qual afirmou:

Combatemos longamente, em conjunto, por uma história maior e mais humana. A tarefa comum, no momento em que escrevo, decerto sofre ameaças. Mas não por nossa culpa. Somos os vencidos provisórios de um injusto destino. Tempo virá, estou certo, em que nossa colaboração poderá verdadeiramente ser retomada: pública, como no passado, e, como no passado, livre.

PROPRIEDADE, LIBERDADE E ECONOMIA

Na prática, onde não há o ‘eu’ e não há liberdade, não há espaço para a economia. Assim, sem a propriedade privada não é possível calcular, diariamente, como satisfazer as nossas necessidades. Isto é, torna-se impossível realizar o cálculo econômico, como bem lembrado por Hayek e Mises. 

Outro grande nome da Escola Austríaca, Carl Menger, também escreveu sobre a natureza das trocas econômicas: 

O princípio que leva as pessoas à troca é simplesmente o que as conduz em toda atividade econômica, ou seja, o empenho em atender plenamente, se possível, às suas necessidades. O prazer que as pessoas sentem na troca econômica de bens é aquele sentimento geral de satisfação que costumam sentir quando percebem que, fazendo isso ou aquilo, conseguem atender melhor às suas necessidades que não o fazendo.

Nesse sentido, por meio da troca, os indivíduos percebem que a economia nada mais é do que um sistema complexo em que os agentes, dotados de racionalidade e escolha, desenvolvem e satisfazem as suas infinitas necessidades. Por essa razão, o mercado é um processo, e não uma entidade que age por conta própria.  

Contudo, para que exista a troca voluntária, é fundamental que exista a propriedade privada: aquilo que distingue, exatamente, o que é MEU e o que é SEU.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, vale lembrar também o fator identificado pelo historiador Richard Pipes:

 A redução dos direitos e liberdades pessoais nos estados totalitários, a ponto de serem abolidos, andava assim de mãos dadas com a redução, até a abolição, da propriedade privada. O processo progrediu mais ainda nos estados comunista, bem menos na Alemanha nazista e menos ainda na Itália fascista; mas nesses três países a luta pelo poder político total era acompanhada por determinados ataques aos direitos de posse privada.

A experiência totalitária confirma que, exatamente como a liberdade requer garantias de direito de propriedade, a luta pelo poder pessoal ilimitado sobre os cidadãos requer a subversão da autoridade do cidadão sobre as coisas, porque estas permitem ao cidadão evitar o confisco total pelo Estado.

15 grandes economistas brasileiros que “não são economistas”

A recente petição pelo fim da obrigatoriedade de diploma de bacharel em Ciências Econômicas gerou um rebuliço. Hoje, apenas quem fez graduação na área pode ser chamado de economista ou ocupar cargos exclusivos. A regra é especialmente forte em concursos públicos.

A proposta de acabar com essa reserva de mercado foi recebida por órgãos de classe e de estudantes da área como um pedido de  “fragmentação” da formação e da classe. Segundo eles, a medida diminuiria a qualidade dos economistas brasileiros.

Como a maioria das reservas de mercado, a exigência de diploma garante privilégios privados às custas da sociedade. A própria teoria microeconômica e a história nos mostram isso.

São muitos os profissionais brasileiros que trabalharam ou trabalham com economia, dando importantes contribuições para a área — seja no mundo acadêmico, no setor empresarial ou na esfera pública — mas que pelas regras vigentes não podem ser chamados de (e, na teoria, sequer trabalhar como) economistas.

Há quem diga que esse fenômeno se resume a profissionais mais velhos, por causa de uma suposta escassez de graduações em economia no Brasil, o que não faz muito sentido pois centros como a Faculdade de Economia da Universidade Federal Fluminense existem desde os anos 40. E de forma alguma esse problema se restringe à velha guarda.

São muitos – de muitas origens e interesses – os geniais economistas brasileiros que não podem exercer a profissão segundo a legislação vigente.

1) Mário Henrique Simonsen, economista mais importante da história do Brasil segundo enquete do Valor Econômico

Mário Henrique Simonsen, formado em engenharia civil, foi um dos maiores profissionais da área. Ex-ministro da Fazenda, do Planejamento e ex-presidente do Banco Central, Simonsen foi professor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas (EPGE-FGV), um dos melhores e mais tradicionais centros de economia no Brasil.

Na verdade, Simonsen criou a EPGE-FGV e seu curso de mestrado em economia. Diz a lenda que, na primeira turma, deu aula de todas as matérias. Foi também muito ativo como economista no setor privado, tendo sido um dos fundadores do banco Bozano Simonsen.

Sua tese de doutorado em Econometria, Inflação: Gradualismo x Tratamento de Choque foi publicada por uma série de editoras universitárias. Seu livro de Macroeconomia, escrito em parceria com outro profissional que não podemos chamar de economista, Rubens Penha Cysne, é leitura quase obrigatória para estudantes de graduação em economia.

Apesar de tudo isso, foi perseguido pela falta de diploma na área. Viu-se obrigado a cursar uma graduação em economia depois de já consagrado. Ironicamente, numa turma que utilizava seus próprios livros.

2) Celso Furtado, segundo economista mais importante da história do Brasil segundo enquete do Valor Econômico

Em 2007, uma enquete do Valor Econômico com diversos economistas renomados elegeu Simonsen como o maior nome da profissão na história do Brasil. O segundo colocado foi Celso Furtado.

Furtado é amplamente considerado o maior economista desenvolvimentista da história brasileira. Seu livro “Formação Econômica do Brasil” é um clássico. É tido como a primeira tentativa de analisar sistematicamente o passado brasileiro, buscando respostas para o presente. Apesar das críticas, como o menosprezo da educação como fator para o desenvolvimento, a relevância é incontestável.

Furtado foi bacharel em Direito pela UFRJ e doutor em economia pela Universidade de Paris-Sorbonne. Passou um período na Universidade de Cambridge, onde completou o pós-doutorado e escreveu seu mais famoso livro. Contribuiu com os governos JK e João Goulart, neste último como ministro, e foi filiado ao PMDB. Deu aulas em grandes universidades do mundo, como Yale, Columbia e a própria Sorbonne.

Nada disso seria suficiente para o COFECON.

3) Eugênio Gudin, terceiro economista mais importante da história do Brasil segundo enquete do Valor Econômico

Eugênio Gudin foi o terceiro colocado na enquete do Valor. Formou-se em engenharia pela atual Escola Politécnica da UFRJ. Por sinal, a lista de engenheiros aqui é considerável.

Durante a carreira, escreveu diversos livros e foi um dos autores mais influentes do seu tempo. Ao contrário de Furtado, não esqueceu a importância da educação. Representou o Brasil na Conferência de Bretton Woods, à qual quase todos os países enviaram seus economistas mais importantes – o representante do Reino Unido, por exemplo, era Keynes.

Foi vice-presidente da FGV e professor da atual UFRJ. Também atuou como ministro no mandato de Café Filho e colaborou com diversos governos.

4) Ricardo Paes de Barros, formulador do Bolsa Família

Ricardo Paes de Barros é engenheiro pelo ITA, mestre em estatística pelo IMPA e doutor em economia pela Universidade de Chicago. Conhecido como PB, foi o principal formulador do Bolsa-Família e é um prolífico pesquisador em economia.

PB é um dos principais especialistas brasileiros em desigualdade social. Atualmente, dedica-se ao tema da educação, como economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor do Insper.

Pela regra vigente, ele não é economista. 

5) Marcelo Medeiros, professor da PUC Rio

Marcelo Medeiros, importante pesquisador em econometria e professor de economia da PUC-Rio, não tem nenhum diploma de economia: é bacharel, mestre e doutor em engenharia elétrica.

Apesar disso, tem publicado em alguns dos mais renomados periódicos de economia do mundo. Em 2016, foram cinco artigos em periódicos internacionais. Em 2017, até agora, mais três. Cada um desses artigos passa pela “revisão por pares” – ou seja, importantes economistas de todo o mundo tem reconhecido o valor do seu trabalho.

No ranking de citações da RePEC, está entre os 20 economistas do Brasil mais influentes na academia. Nada disso é suficiente para a burocracia brasileira.

6) Pedro Malan, ministro da Fazenda durante 8 anos e formulador do Plano Real

Pedro Malan é engenheiro e doutor em economia pela Universidade da California em Berkeley. Atuou em diversos órgãos no Brasil e fora. Foi professor da PUC Rio, conselheiro do Itaú Unibanco e integrou o FMI.

Sua fama, porém, é maior pelo que fez no poder público. Foi negociador da dívida externa em nome do Estado brasileiro, resolvendo um problema histórico da nossa economia. Atuou ainda como formulador do Plano Real e ministro da Fazenda durante todo o mandato de FHC.

7) Winston Fritsch, formulador do Plano Real

Winston Fritsch, também engenheiro de formação, é doutor em economia pela Universidade de Cambridge. Foi professor da UFRJ e da PUC-Rio.

Com colegas desta última, participou ativamente do Plano Real, sendo Secretário de Política Econômica durante o período.

8) Joaquim Levy, ex-secretário do Tesouro e Ministro da Fazenda

Joaquim Levy é engenheiro naval pela UFRJ e doutor em economia pela Universidade de Chicago, mas não pode usufruir do título de economista. Foi secretário do Tesouro no primeiro governo Lula, quando promoveu um bem sucedido ajuste fiscal, e ministro da Fazenda no segundo governo Dilma. Levy também atuou no setor privado, tendo sido diretor-superintendente no Banco Bradesco.

Após sua última passagem pelo Ministério da Fazenda, Levy foi nomeado diretor financeiro do Banco Mundial, cargo que atualmente ocupa. O ex-ministro já ocupou outras importantes posições internacionais, incluindo a vice-presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e sua atuação como economista no Banco Central Europeu.

9) Armando Castelar, pesquisador do IBRE/FGV

Na mesma turma de Paes de Barros no ITA, estava Armando Castelar. Ele é bacharel em administração pela UFRJ e engenharia eletrônica pelo ITA, mestre em matemática pelo IMPA, é doutor em economia pela Universidade da California em Berkeley.

Hoje é consultor econômico, professor do Instituto de Economia da UFRJ e pesquisador no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV).

10) João Manoel Pinho de Mello, professor licenciado do Insper e atual secretário de reformas microeconômicas do Ministério da Fazenda

Doutor pela Universidade de Stanford, João Manoel Pinho de Mello ocupa atualmente a Secretaria de Reformas Microeconômicas do Ministério da Fazenda.

É professor titular do Insper e ex-professor da PUC Rio. Por ser formado em administração, oficialmente ele “não é economista”.

11) Eduardo Azevedo, professor da Universidade de Pensilvânia

Eduardo Azevedo é um dos mais brilhantes economistas acadêmicos brasileiros da atualidade, além de ex-analista do Banco Central, publicando frequentemente nos maiores periódicos da área.

É professor da Universidade de Pensilvânia e Ph.D pela Universidade de Harvard. Por ser bacharel em matemática, não pode assinar como economista ou ocupar no Brasil um cargo exclusivo à profissão.

12) Cláudio Haddad, ex-economista chefe do Banco Garantia e fundador do Insper

Cláudio Haddad teve grande destaque tanto na academia quanto no setor privado. Formado em engenharia pelo IME, cursou Ph.D em economia na Universidade de Chicago. Lá, foi um dos primeiros a estimar o PIB brasileiro no início do século. Sua tese é estudada por praticamente todos os cursos de História Econômica do Brasil, ainda hoje.

Haddad foi diretor do Banco Central e professor da EPGE-FGV, além de presidente e economista-chefe do Banco Garantia. Em 1999, passou a se dedicar à fundação de uma nova universidade privada no Brasil, o Insper, começando pelos cursos de economia e administração.

Alguns integrantes da lista, como Pinho de Mello e Ricardo Paes de Barros, são professores da escola de economia que ele fundou. Muitos economistas da nova geração surgem e surgirão de lá. Ainda assim, Haddad segue sem poder ocupar cargos exclusivos a economistas no Brasil.

13) Fábio Kanczuk, atual Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda

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Atualmente, o ocupante da importantíssima Secretaria de Política Econômica da Fazenda não pode assinar como economista.

Fábio Kanczuk é engenheiro eletrônico pelo ITA e PhD em economia pela UCLA, com pós-doutorado em Harvard. Antes de ir para o governo, era professor da USP e atuou em importantes cargos no setor privado.

14) Bernardo Guimarães, professor da FGV-SP

Bernardo Guimarães é engenheiro pela USP e doutor em economia pela Universidade de Yale. Foi professor da London School of Economics, talvez a mais importante escola de economia da Europa. Atualmente, é professor de economia da FGV-EESP e um prolífico pesquisador na área.

Bernardo também foi colunista da Folha e escreveu um livro de Introdução a Economia adotado em diversas faculdades brasileiras. Assim como outros casos da lista, está entre os 20 mais influentes da academia brasileira.

15) Samuel Pessôa, chefe do Centro de Crescimento Econômico do IBRE-FGV

Samuel Pessôa é formado em física pela USP e doutor em economia pela mesma universidade. Foi professor da FGV-RJ e atualmente é chefe do Centro de Crescimento Econômico do IBRE-FGV.

Em colunas na Folha e ensaios para a revista piauí, se consolidou como um dos mais ativos participantes do debate econômico brasileiro. Mas não pode ser economista ou ocupar cargo exclusivo, de acordo com o COFECON.

Bônus: Mais de 60% dos vencedores do Nobel de Economia

Um levantamento deste Instituto Mercado Popular mostrou que menos de 40% dos Prêmios Nobel em economia são bacharéis. Ou seja, mais de 60% dos laureados não poderiam assinar como economistas no Brasil. Em mais de 20% dos casos, os vencedores não tinham qualquer formação em economia, além da prática profissional.

A lista de pessoas que ajudaram e ajudam a economia no Brasil a crescer, mesmo sem serem bacharéis na área, é enorme e seguiria por muitos parágrafos. O importante é que o leitor entenda que certamente um diploma em economia não entrega qualidade profissional. Se assim fosse, não teríamos tantos grandes economistas brasileiros que não podem ser chamados assim sob pena de sanções trabalhistas. Afinal, incorreriam no perigoso crime de exercer um saber sem pagar mensalidade à uma corporação.

VACINAÇÃO PRIVADA E A MENTALIDADE ESTATISTA

Quando se examina a evolução da carga tributária ao longo dos tempos, nota-se facilmente o seu traço mais característico: um aumento constante e progressivo, que retrata o fato de as pessoas transferirem cada vez mais dinheiro ao estado.

Contudo, essa transferência alucinada de recursos não é um problema que se encerra em si mesmo, mas que vem acompanhado da constante e progressiva transferência de poder.

Isto é, esse remanejamento de recursos sempre vem justificado por um aumento de ‘atribuições’ e significa que o estado passa a ser o responsável pela execução de serviços que até então eram – ou poderiam ser – exercidos pela própria sociedade.  O exemplo mais remoto e notável disso é a entrega de cartas e correspondências, tarefa que o estado invocou pra si a despeito de poder ser plenamente exercida pela própria sociedade.

A raiz de todo o mal e a grande causa a ser combatida, portanto, é a transferência de poder ao estado, sendo a transferência de recursos mera consequência desse primeiro fenômeno. Esse excesso de poder nas mãos do estado ficou ainda mais evidente durante a pandemia que atravessamos.

Com o desenvolvimento de vacinas, a grande atribuição de vacinar as pessoas logicamente recaiu sobre estado, pela transferência de poder realizada quando da promulgação da Constituição de 1988, que em seu artigo 196 prevê a saúde como um “direito de todos” e um “dever” estatal.

Não demorou para a incompetência do estado na execução do programa de vacinação ficar evidente. Foi aí que grandes empresários passaram a negociar a compra direta de vacinas para a imunização de seus colaboradores, o que logo foi vetado pelo governo.

Então, os empresários reagiram e a Câmara dos Deputados aprovou texto-base de projeto de lei que autoriza (que gentil!) algumas pessoas jurídicas de direito privado (empresas, associações, sindicatos e cooperativas) a comprarem e administrarem vacinas em seus colaboradores ou associados.

Mas, não é tão simples, já que o projeto também exige que os particulares que queiram realizar a vacinação “doem” 50% das doses adquiridas ao SUS. Um tipo de doação “compulsória”, que nada mais é que a pura e simples expropriação à qual estamos habituados.  Além disso, caso os particulares comprem do mesmo fornecedor estatal, o estado tem preferência na entrega.

Apesar da vacinação privada em nada alterar o cronograma do SUS e até aliviar a pressão sobre o sistema público, cerca de 120 mongolóides na Câmara dos Deputados votaram contra o projeto, que também teve a repulsa de grande parte da sociedade, incluindo celebridades globais com jatinhos financiados pelo BNDES.

Isso demonstra o quão enraizada e ‘cool’ é a noção de que o estado deve ser o provedor central de serviços na sociedade. Enquanto vigorar esse pensamento, a estupidez e burocracia estatais ocuparão lugares que deveriam ser preenchidos pela inteligência e dinamismo da sociedade.

O resultado é esse: serviços cada vez mais ineficientes a um custo cada vez maior, prestados a pessoas cada vez menores perto do gigantesco aparato estatal.

Autor: Felipe Luiz.

O contrato social e o consentimento do governado

Não há consentimento para algo que ninguém assinou voluntariamente

O que dá a algumas pessoas o direito de dominar, ordenar e governar as outras? 

Pelo menos desde a época de John Locke, a mais comum e aparentemente mais convincente resposta tem sido a do tal “consentimento do governado”. 

Quando os revolucionários norte-americanos justificaram sua secessão do Império Britânico, dentre outras coisas eles falaram que “Governos são instituídos entre os Homens, derivando seus justos Poderes do Consentimento dos Governados”. Aparentemente, isso soou bem, especialmente se o indivíduo não pensar a respeito por muito tempo ou muito profundamente. 

Porém, quanto mais profunda e demoradamente alguém se puser a pensar sobre o assunto, mais problemático ele se revela.

Várias perguntas imediatamente vêm à mente. Todas as pessoas devem consentir? Se não, quantas devem? E quais opções restam àqueles que porventura optam por não consentir? Qual deve ser o formato do consentimento — verbal, escrito, explícito ou implícito? Se implícito, como ele deve ser registrado? Dado que a composição da sociedade está em constante mudança — em decorrência de nascimentos, óbitos e migrações internacionais —, com qual frequência devem os governantes confirmar que ainda retêm o consentimento dos governados? 

A legitimidade política, pelo que se pode ver, apresenta uma variedade de dificuldades quando saímos do âmbito das abstrações teóricas e partimos para a percepção prática.

Levanto essa questão porque, no que concerne ao chamado contrato social, frequentemente tive a chance de protestar dizendo que jamais havia visto tal contrato, muito menos havia sido consultado sobre meu consentimento quanto a ele. Para ser válido, um contrato requer oferta voluntária, aceitação e compensação. Como jamais recebi tal oferta de meus governantes, certamente jamais aceitei tal contrato; e, em vez de compensação, tudo que recebi dos meus governantes foram desconsideração, desrespeito e desdém — para não mencionar o fato de que os governantes, não obstante a ausência de qualquer acordo, sempre ameaçaram explicitamente me infligir grandes danos caso eu não obedeça aos seus éditos. 

Mas que insolência monumental a dessa gente! O que lhes dá o direito de me roubar, de me perseguir e de me ameaçar? Certamente não é o meu desejo ser um cordeirinho que eles podem tosar e trucidar sempre que considerarem conveniente para a consecução de seus próprios fins.

Ademais, quando desdobramos a ideia do “consentimento do governado” em detalhes realistas, toda a noção imediatamente se torna completamente ilógica e absurda. Apenas considere como tudo iria funcionar. Um pretenso governante se aproxima de você oferecendo um contrato, esperando a sua aprovação. Eis o acordo, diz ele.

Eu, a pessoa da primeira parte (“o governante”), prometo:

(1) Estipular quanto do seu dinheiro você deve me entregar, bem como quando, de que maneira e para onde a transferência será feita. 

Você não terá nenhuma voz ativa na questão, exceto implorar por minha clemência; e caso não cumpra meus ditames, meus agentes irão puni-lo com multas, aprisionamento, confisco de bens e, na eventualidade de uma obstinada resistência, até mesmo com a morte.

(2) Criar milhares e milhares de regras, às quais você deve obedecer sem questionar, novamente sob pena de sofrer as punições supracitadas, que serão instantaneamente ministradas por meus agentes. 

Você não terá nenhuma voz ativa na determinação do conteúdo destas regras, as quais serão tão numerosas, complexas e, em vários casos, além de qualquer possibilidade de compreensão, que nenhum ser humano seria capaz de saber pouco mais do que um punhado delas, menos ainda seu caráter específico. Ainda assim, caso você não cumpra todas elas, sentir-me-ei livre para puni-lo de acordo com as leis criadas por mim e por meus aliados.

(3) Ofertar para você, de acordo com os termos estipulados por mim e por meus aliados, os chamados bens e serviços públicos. 

Embora você realmente possa dar algum valor a alguns destes bens e serviços, a maioria terá pouco ou nenhum valor para você, e há alguns que você considerará totalmente abomináveis. Porém, sempre relembrando, você, como indivíduo, em nenhuma circunstância terá qualquer voz ativa sobre os bens e serviços que eu venha a fornecer, seja sobre a qualidade deles, seja sobre o custo total que sai do seu bolso para bancá-los.

(4) Na eventualidade de uma contenda judicial entre nós, os juízes — todos eles gratos a mim por seus empregos e magnânimos salários — é que decidirão como solucionar o litígio.  

É claro que eu recomendo que você nem sequer se dê ao trabalho de fazer tudo isso, pois é de se esperar que você irá perder essa batalha; aliás, terá muita sorte caso consiga efetivar sua queixa em algum tribunal.

Em troca destes “benefícios” governamentais supracitados, você, a pessoa da segunda parte (“o governado”), promete:

(5) Ficar calado, não protestar, não questionar, obedecer a todas as ordens expedidas pelo governante e seus agentes, e prostrar-se em servidão diante deles como se fossem pessoas importantes e honrosas. Quando ordenarem “Pule!”, limite-se apenas a perguntar “Até que altura?”

Que negócio! Alguma pessoa que faça o mínimo uso de suas faculdades mentais aceitaria tal trato? Isso seria imaginável?

No entanto, a descrição acima do verdadeiro contrato social que, dizem, todos os indivíduos aceitaram é abstrata demais para capturar a crua realidade que é ser governado.  

Para enumerar os reais detalhes, até hoje ninguém superou Pierre-Joseph Proudhon, que escreveu:

Ser GOVERNADO significa ser observado, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, cercado, doutrinado, admoestado, controlado, avaliado, censurado, comandado; e por criaturas que para isso não têm o direito, nem a sabedoria, nem a virtude para fazê-lo.

Ser GOVERNADO significa que todo movimento, operação ou transação que realizamos é anotada, registrada, catalogado em censos, taxada, selada, avaliada monetariamente, patenteada, licenciada, autorizada, recomendada ou desaconselhada, frustrada, reformada, endireitada, corrigida.

Submeter-se ao governo significa consentir em ser tributado, adestrado, redimido, explorado, monopolizado, extorquido, pressionado, mistificado, roubado; tudo isso em nome da utilidade pública e do bem comum.  Então, ao primeiro sinal de resistência, à primeira palavra de protesto, somos reprimidos, multados, desprezados, humilhados, perseguidos, empurrados, espancados, garroteados, aprisionados, fuzilados, metralhados, julgados, sentenciados, deportados, sacrificados, vendidos, traídos e, para completar, ridicularizados, escarnecidos, ultrajados e desonrados.

Isso é o governo, essa é a sua justiça e sua moralidade! (P.-J. Proudhon, Idée générale de la révolution au XIXe siècle)

Portanto, voltando à questão de a legitimidade política ser determinada pelo consentimento do governado, ao se fazer uma reflexão sóbria, toda a ideia de que há esse tal consenso parece ser tão extravagante e fantasiosa quanto o unicórnio. Ninguém em seu juízo perfeito, exceto talvez um masoquista irrecuperável, iria voluntariamente consentir em ser tratado como os governos de fato tratam seus súditos.

Mesmo assim, pouquíssimos de nós estamos, hoje, ativamente engajados em uma rebelião armada contra nossos governantes. E é exatamente essa ausência de uma sincera e total revolta violenta que, estranho de dizer, alguns comentaristas midiáticos tomam como evidência de nosso consentimento para com a maneira ultrajante com que o estado nos trata.  

Uma condescendência relutante e prudencial, entretanto, não é a mesma coisa que consentimento, especialmente quando as pessoas, como eu, aquiescem fervendo em silêncio, mantendo latente sua furiosa resignação.

Só para constar, posso declarar com total sinceridade que eu não aprovo a maneira como sou tratado pelos mentirosos, ladrões, imorais e corruptos que se autoqualificam como sendo o governo, e nem por aqueles que constituem a tirânica pirâmide dos governos estaduais e municipais que infestam o país.  

Meu desejo sincero é que todos esses indivíduos façam, ao menos uma vez em suas desprezíveis vidas, uma coisa honrosa: sugiro que considerem seriamente a prática do seppuku. Se eles vão utilizar uma espada afiada ou rombuda é o de menos; o que interessa é que tenham a dignidade de conduzir o ato até sua exitosa conclusão.

Um adendo sobra o “ame-o ou deixe-o”: sempre que escrevo as linhas acima, recebo inúmeras mensagens de vários Neandertais que, imaginando que odeio meu país, exigem que eu caia fora o mais rápido possível, e volte para de onde jamais deveria ter saído. Tais reações evidenciam não somente uma total falta de educação, mas também uma fundamental incompreensão acerca da natureza da minha queixa e do meu descontentamento.

Em primeiro lugar, posso afirmar que não odeio meu país, e nem teria motivos para tal, dado que não existe essa entidade chamada “país”; há apenas os indivíduos que residem dentro de determinadas fronteiras

Em segundo lugar, e ainda mais importante, por que sou eu quem tem de sair? Não estou agredindo ninguém, não estou roubando e nem espoliando ninguém, e não vivo à custa de ninguém. Por que sou eu, e não os agressores, quem tem de se mudar? 

Quando sou convidado a me retirar e ir morar em outro lugar, sinto-me como alguém que mora em uma cidade que foi tomada por um bando de arruaceiros que deram a seguinte ordem: quem não gostar de ser roubado, ameaçado, intimidado e molestado por rufiões indesejados, que se mude para outra cidade. 

Para mim, parece muito mais moralmente certo fazer com que sejam os criminosos aqueles que tenham de sair correndo.

Como o “Tratado da Burguesia” enriqueceu o mundo

O súbito salto na riqueza que poucos valorizam

O livro Leave Me Alone and I’ll Make You Rich: How the Bourgeois Deal Enriched the World (Deixe-me em paz e eu enriquecerei você: como o Tratado da Burguesia tornou o mundo mais rico), escrito por Deirdre N. McCloskey e Art Carden, é um notável esforço para explicar aquele que é um dos mais impressionantes e misteriosos fatos da história do mundo.

Até o ano 1800, praticamente todos os indivíduos viviam na mais abjeta pobreza. E então, como que por milagre, a partir do ano 1800, começou a haver um rápido e intenso aumento no padrão de vida médio ao redor do mundo.

Este famoso gráfico em forma de “bastão de hockey”, do projeto Our World in Data, sobre a prosperidade humana, mostra esse fenômeno por meio da evolução do PIB real per capita para vários países e para o mundo, desde o ano 1.000.

O Tratado da Burguesia

Em termos sucintos, eis o cerne da teoria do livro.

Antes desta mudança no modo de pensar, havia honra em apenas duas opções: ser soldado ou ser sacerdote. A honra estava apenas em estar ou no castelo ou na igreja. As pessoas que meramente compravam e revendiam coisas para sobreviver, ou mesmo as que inovavam, eram desprezadas e escarnecidas como trapaceiras pecaminosas.

E então algo mudou. Primeiro na Holanda, quando a população se revoltou contra o controle espanhol do país. Depois na Inglaterra, com sua revolução, a qual é considerada a primeira revolução burguesa da história. 

As revoluções e reformas da Europa, de 1517 a 1789, deram voz a pessoas comuns fora das hierarquias de bispos e aristocratas. As pessoas passaram a admirar empreendedores. A classe média, a burguesia, passou a ser vista como boa e ganhou a autorização para enriquecer.

De certa forma, as pessoas assinaram o ‘Tratado da Burguesia’, o qual se tornou uma característica dos lugares que hoje são ricos, como a Inglaterra, a Suécia ou Hong Kong: “Deixe-me inovar e ganhar dinheiro no curto prazo como resultado dessa inovação; e então, eu o tornarei rico no longo prazo”.

E foi isso que aconteceu. Começou no século XVIII com o pára-raios de Franklin e a máquina a vapor de James Watt. Isso foi expandido, nos anos 1820 (século XIX), para uma nova invenção: as ferrovias com locomotivas a vapor. E então vieram as estradas macadamizadas criadas pelo engenheiro escocês John Loudon McAdam. Depois surgiram as ceifadeiras, criadas por Cyrus McCormick, e as siderúrgicas, criadas por Andrew Carnegie.  

Tudo se intensificaria ainda mais no restante do século XIX e aceleraria fortemente no início do século XX. Consequentemente, o Ocidente, que durante séculos havia ficado atrás da China e da civilização islâmica, se tornou incrivelmente inovador. As pessoas simplesmente passaram a ver com bons olhos a economia de mercado e a destruição criativa gerada por suas lucrativas e rápidas inovações.

Deu-se dignidade e liberdade à classe média pela primeira vez na história da humanidade e esse foi o resultado: o motor a vapor, o tear têxtil automático, a linha de montagem, a orquestra sinfônica, a ferrovia, a empresa, o abolicionismo, a imprensa a vapor, o papel barato, a alfabetização universal, o aço barato, a placa de vidro barata, a universidade moderna, o jornal moderno, a água limpa, o concreto armado, os direitos das mulheres, a luz elétrica, o elevador, o automóvel, o petróleo, as férias, o plástico, meio milhão de novos livros em inglês por ano, o milho híbrido, a penicilina, o avião, o ar urbano limpo, direitos civis, o transplante cardíaco e o computador.

O resultado foi que, pela primeira vez na história, as pessoas comuns e, especialmente os mais pobres, tiveram sua vida melhorada.

Nada disso pode ser explicado pela exploração de escravos ou de trabalhadores. Tampouco pelo imperialismo. Os números são grandes demais para ser explicados por um roubo de soma zero.

Também não foram, argumentam os autores, os investimentos ou mesmo as instituições já existentes. Os autores reconhecem que é necessário ter capital e instituições para implantar e incorporar as idéias; mas capital e instituições são causas intermediárias e dependentes, e não a raiz. Idéias sobre a dignidade humana e a liberdade foram as grandes responsáveis. O mundo moderno surgiu quando se começou a tratar as pessoas com mais respeito, concedendo a elas mais liberdade. 

O que causou o Grande Enriquecimento, portanto, foi uma mera mudança de mentalidade, uma mera mudança de atitude. Em uma palavra, foi o liberalismo. Dê às massas de pessoas comuns igualdade perante a lei e igualdade de dignidade social, e então deixe-as em paz. Faça isso e elas se tornam extraordinariamente criativas e energéticas.

A ideia liberal, segundo os autores, foi gerada por uma feliz coincidência de acontecimentos no noroeste europeu de 1517 a 1789: a Reforma, a Revolta Holandesa, as revoluções na Inglaterra e na França, e a proliferação da leitura. Estes acontecimentos, conjuntamente, libertaram as pessoas comuns, dentre elas a burguesia e sua livre iniciativa. 

Em termos sucintos, segundo os autores, o Tratado da Burguesia é este: primeiramente, deixe-me tentar este ou aquele aprimoramento. Ficarei com os lucros. Em um segundo ato, no entanto, estes lucros servirão de chamariz para aqueles importunos concorrentes, os quais irão também entrar no mercado, aumentar a oferta de bens e serviços, pegar parte da minha clientela e, consequentemente, erodir esses meus lucros. Já no terceiro ato, após todos os aprimoramentos e melhorias que criei terem se espalhado, eles farão com que você melhore de vida substantivamente e fique rico.

Possíveis objeções

Há muita coisa condensada em tudo isso, mas a teoria de McCloskey parece ainda aberta a objeções. Ou, no mínimo, a qualificações. 

Como os autores corretamente observam, o Grande Enriquecimento se espalhou por todo o mundo, inclusive para a China, mas o alto crescimento econômico naquele país não foi acompanhado de liberalismo político. E isto não é meramente uma questão de a inércia do passado ser incapaz de acompanhar a teoria professada naquele país pelos defensores de reformas pró-mercado. Ao contrário: aqueles que abriram a economia chinesa jamais renunciaram à ditadura do Partido Comunista. 

Mesmo quando aplicada ao exemplo-modelo da Grã-Bretanha, a teoria de McCloskey tem de ser modificada. Será que os liberais clássicos britânicos reivindicaram ter o mesmo status legal da Coroa e da aristocracia? É fato que eles afirmaram possuir direitos legais que a Coroa não poderia abolir, mas, com algumas exceções, eles não foram tão longe ao ponto de reivindicar a posição que McCloskey atribui a eles. 

Se, no entanto, não podemos aceitar completamente a teoria de McCloskey, temos de reconhecer seus consideráveis méritos, os quais são baseados em seu profundo conhecimento de história econômica. Infelizmente, isso não é o bastante para ela, de modo que ela se aventura em disciplinas como a história do pensamento político, na qual ela demonstra uma postura menos segura do que a que exibe na história econômica. 

Ela afirma que

a visão, em 1651, do filósofo inglês Thomas Hobbes era a de que sem um rei todo-poderoso, haveria uma guerra de “todos contra todos”. Falso. Não mesmo. Hobbes suponha que, quando as pessoas são deixadas em paz, tendo de se virar por conta própria, elas se tornam cruéis, egoístas e incapazes de se auto-organizarem voluntariamente. Para domá-las, seria necessário haver um ‘Leviatã’, como ele o rotulou no título de sua obra de 1651 — ou seja, uma grande besta chamada governo. Somente um rei com mãos de ferro seria capaz de manter a paz e proteger a civilização. (pp. 3-4) 

Contrariamente ao que ela aqui sugere, o estado da natureza, para Hobbes, é o de uma sociedade sem governo nenhum, e não o de uma sociedade sem um monarca absolutista. 

Pessoas vivendo sob as monarquias limitadas da Idade Média — embora sua situação fosse insatisfatória para Hobbes — não estavam no estado da natureza. 

Adicionalmente, embora realmente seja verdade que Hobbes preferisse uma monarquia às outras formas de governo, ele reconhecia outros tipos de governo como legítimos. E, embora isso ainda seja motivo de debate, ele parece ter aceitado o reinado de Cromwell após ter retornado à Inglaterra.

Sua abordagem sobre Rousseau é igualmente falha. 

Ela afirma que Rousseau “imaginava que o direito de um indivíduo livre e digno de dizer ‘não’ pode ser sobrepujado por uma misteriosa ‘vontade geral’, a qual Rousseau, especialistas similares e burocratas do Partido Comunista seriam facilmente capazes de distinguir e impor a terceiros por meio de medidas coercitivas” (p. 180). 

Embora McCloskey esteja correta em afirmar que Rousseau se opunha aos direitos individuais nos moldes defendidos pelos liberais clássicos, ela gravemente deturpou a ‘vontade geral’, a qual é estabelecida pelo voto popular sob determinadas condições, e não imposta por especialistas.

Em uma valiosa discussão, McCloskey afirma que “a palavra ‘honesto’ foi transferida de honra aristocrática para honra burguesa” (p. 149). Em seu sentido aristocrático, “honesto tinha o intuito de significar uma pessoa ‘digna e apta para estar no topo’, e a honestidade era uma questão de posição social. […] A moderna acepção da palavra honestidade para alguém ‘que diz a verdade e que mantém sua palavra’ aparece no inglês pela primeira vez em 1500, mas o significado “honorável por virtude de seu alto status social” domina seu uso até o século XVIII” (p. 150).

Este, repetindo, é um ponto válido, mas se a intenção era sugerir, como parece ser o caso, que os aristocratas de antes da era burguesa teriam se sentido livres para mentir em suas negociações diárias, já que fazê-lo não macularia sua honra, tal afirmação é extremamente dúbia. Os ensinamentos da Igreja, explicados por Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, eram o de que mentir era absolutamente proibido.

Para concluir

Em Leave Me Alone and I’ll Make You Rich, McCloskey e Carden nos ajudam a entender o Grande Enriquecimento, um fato central na história do mundo. Eles corretamente enfatizam a importância que as ideias sobre liberdade e livre mercado tiveram em permitir e estimular esse desenvolvimento. E eles decisivamente refutam mitos marxistas e demais sobre a história econômica.

Em minhas breves considerações acima, aventurei-me em fazer algumas poucas críticas ao livro. Ao final, não posso reclamar: eu os deixei em paz, e eles me tornaram mais rico (em conhecimento).
autor

David Gordoné membro sênior do Mises Institute, analisa livros recém-lançados sobre economia, política, filosofia e direito para o periódico The Mises Review, publicado desde 1995 pelo Mises Institute. É também o autor de The Essential Rothbard.

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Bitcoin versus moedas estatais digitais: as cruciais diferenças para seu bem-estar financeiro futuro

Entender estes conceitos será cada vez mais imprescindível para você se proteger

Já é fato que o mundo se encaminha para a substituição das moedas de papel por moedas digitais.

Os próprios Bancos Centrais dos principais países do mundo já falam abertamente em emitir suas próprias moedas digitais, chamadas deCentral Banks Digital Currencies – CBDC(Moedas Digitais Emitidas por Bancos Centrais). 

Na prática, os Bancos Centrais utilizarão a tecnologia blockchain para transformar suas respectivas moedas nacionais em criptomoedas.

Mais especificamente, isso significa que qualquer cidadão poderá ter uma conta diretamente no Banco Central (como hoje têm os bancos e o Tesouro), o qual agorá terá o poder de enviar moedas digitais diretamente para as carteiras de cada indivíduo, sem mais depender do setor bancário como intermediário.

As consequências deste arranjo, que irá alterar toda a arquitetura monetária e bancária hoje existente, bem como toda a natureza das políticas monetária e fiscal, já foi discutida em detalhes neste artigo, não necessitando de ser repetida aqui.

O ponto que merece esclarecimento agora é outro. Por se tratar de um ativo monetário digital, muitas pessoas equiparam as Central Bank Digital Currencies (doravante, CBDC) ao Bitcoin (ou a outras criptomoedas), como se os Bancos Centrais estivessem a ponto de emitir uma espécie de “bitcoin estatal”. Nada mais distante da realidade.

A única característica que o Bitcoin tem em comum com as distintas propostas de CBDC é que ambos são ativos monetários e digitais. Em todo o resto, são radicalmente distintos. 

Primeira diferença

Em primeiro lugar, aqueles ativos que pretendem ser utilizados como meio de troca são ativos monetários.

Consequentemente, os ativos monetários, como todos os ativos, podem se dividir em ativos reais e ativos financeiros.

Os ativos financeiros são aqueles que constituem o passivo de outro agente econômico. Já os ativos reais não são passivo de ninguém.

Bitcoin é um ativo real, pois não constitui nenhuma obrigação financeira para ninguém (ninguém está obrigado a fazer algo ou a dar algo em troca de um Bitcoin). O Bitcoin, ao ser criado, não se torna um passivo para ninguém. 

É exatamente o mesmo que ocorre com o ouro: ao ser produzido (minerado), ele se torna um ativo. O emissor cria/descobre a moeda (Bitcoin ou ouro), transfere, e fim. Ele não tem mais nenhuma obrigação em relação a ela. Ele não tem mais nenhum passivo. E nenhum ativo. O portador desse dígito ou deste ouro não tem por que voltar ao emissor para exigir qualquer coisa.

Já as CBDC são passivos dos Bancos Centrais, e, de modo mais geral, do estado. As moedas estatais pertencem ao governo, e o desempenho delas depende diretamente da qualidade deste governo. São, portanto, ativos financeiros, e não ativos reais.

Essa diferença é crucial, pois o valor dos ativos financeiros está completamente ligado à capacidade do devedor (o emissor) de honrar seus compromissos: diante de um repúdio total ou parcial de sua obrigação, ou mesmo diante da simples suspeita de incapacidade de honrar uma parte de suas obrigações, o ativo financeiro se deprecia.

Um governo cuja capacidade de pagamento da dívida é colocada em dúvida verá uma desvalorização da moeda que emite.

Consequentemente, o estado tem a capacidade de destruir completamente o valor das CBDC, mas jamais poderá fazer o mesmo como o Bitcoin (nem o estado e nem nenhum outro agente).

Segunda diferença

Os ativos reais podem ser subdivididos em ativos tangíveis e intangíveis (ou digitais).

Os tangíveis são aqueles cuja funcionalidade está vinculada à sua estrutura material: se a estrutura material do ativo é alterada, alteram-se as funções que ele pode desempenhar.

Os intangíveis são aqueles cuja funcionalidade não depende do material que eles contêm.

ouro, por exemplo, é um ativo monetário real e tangível (uma moeda de ouro não é o mesmo que uma moeda de latão).

Já o Bitcoin é um ativo monetário real e intangível (ou virtual), uma vez que o relevante do Bitcoin não é o suporte que contém a informação que converte seu detentor em titular socialmente reconhecido de uma determinada quantidade de unidades monetárias, mas sim a informação em si mesma.

Já todos os ativos financeiros, como as moedas estatais, são ativos intangíveis. Daí a possível confusão entre Bitcoin e as CBDC.

Terceira diferença

Os ativos monetários também podem se dividir entre ativos monetários de emissão centralizada/monopolística e ativos monetários de emissão descentralizada/competitiva.

Por definição, as CBDC são ativos monetários de emissão centralizada, dado que somente o Banco Central pode criá-las.

Já a emissão do Bitcoin, ao contrário, é descentralizada, uma vez que qualquer pessoa pode exercer o papel de minerador para verificar transações dentro da comunidade Bitcoin, sendo consequentemente recompensado com unidades recém-criadas (entretanto, essa criação competitiva não é livre, pois está restringida pelas regras do protocolo do Bitcoin, o qual limita a margem para se aumentar a oferta; tal restrição também adapta a oferta ao aumento da demanda, mantendo a estabilidade do valor).

Em suma, ao passo que as CBDC podem ser livremente emitidas pelos governos, sem nenhuma restrição, e com total monopólio, o exato oposto ocorre com o Bitcoin, pois não há emissão livre, não há monopólio, e há um limite máximo para a quantidade total de unidades.

Quarta diferença

Os ativos monetários também podem ser categorizados como ativos monetários de transferência centralizada ou de transferência descentralizada.

Nos de transferência centralizada, todas as transações são canalizadas através de um único nódulo central (ou de um conjunto muito reduzido de nódulos centrais oligopolísticos), seja para simplesmente processá-las ou mesmo para autorizá-las. Pense na atual moeda estatal e no atual sistema bancário.

O grau de centralização das transferências é importante porque a existência de nódulos centrais monopolísticos ou oligopolísticos outorga a estes nódulos o poder de bloquear as transações não-desejadas ou não-autorizadas entres os nódulos subordinados: ou seja, institui uma relação vertical (ou assimétrica) entre os distintos nódulos e a rede (centrais versus não-centrais).

As CBDC são ativos de transferência centralizada, pois cada transação tem de ser validade pelo Banco Central ou pelo sistema bancário que opera sob regulações do Banco Central.

Já o papel-moeda estatal, embora seja um ativo monetário de emissão centralizada, é de transferência descentralizada, uma vez que podemos transmitir as cédulas de mão para mão, à margem do conhecimento e do consentimento do Banco Central.

Da mesma maneira, o Bitcoin é um ativo monetário de transferência descentralizada, pois qualquer detentor de Bitcoin pode transferir suas unidades monetárias para qualquer outra pessoa, sem depender da permissão de nenhuma autoridade central. E qualquer indivíduo pode verificar essa transação convertendo-a em um registro histórico consensual.

Um resumo das quatro

Em suma, o Bitcoin é um ativo monetário real, digital, de emissão descentralizada e de transferência também descentralizada.

O ativo monetário mais próximo do Bitcoin é o ouro, o qual podemos descrever como um ativo monetário real, tangível, de emissão descentralizada e de transferência também descentralizada.

As CBDC não têm nada a ver com Bitcoin, pois são ativos monetários financeiros (e, portanto, intangíveis), de emissão centralizada e de transferência também centralizada.

Na prática, as CBDC estão muito mais próximas do atual papel-moeda fiduciário, o qual é um ativo monetário financeiro (e, portanto, intangível), de emissão centralizada, mas de transferência descentralizada (ao contrário das CBDC).

Para concluir

Note que as CBDC representam uma redução da privacidade financeira em relação ao papel-moeda, o qual será abolido.

Assim, a suposta “revolução” das CBDC perante o papel-moeda consiste simplesmente em uma mudança nos termos de sua transferência (pois ambos são, vale repetir, passivos do Banco Central): as transações feitas pessoalmente entre dois indivíduos com papel-moeda serão abolidas e canalizadas para um nódulo central, o qual, em troca de reduzir os custos operacionais dessas transações, obterão enorme poder de autorizá-las ou negá-las (ou de alterar arbitrariamente os termos, sempre que quiser).

As consequências de tudo isso em termos de privacidade, de políticas monetária e fiscal, e da implantação de políticas assistencialistas, como a Renda Básica Universal, são inauditas (e foram descritas em detalhes aqui).

As CBDC, na prática, representam a essência de tudo que o Bitcoin foi criado para combater.